Literatura

Literatura
A literatura brasileira evoluiu através de fases tão distintas que seu único fator de unidade se atribui à continuidade do exercício da língua portuguesa. Pois aí reside sua origem: na literatura de expressão portuguesa, da qual começou como um prolongamento, levando vários séculos para adquirir um perfil próprio. Considera-se como primeiro documento literário brasileiro a Carta de Pero Vaz de Caminha, dando conta ao rei português da descoberta da nova terra, em 1500. Essa carta, de certo modo, definiu a linha dominante das letras coloniais nos primeiros séculos, ao fazer a propaganda das riquezas naturais em florestas, abundância de águas, fauna, solo fértil, clima ameno bem diferente dos rigores do hemisfério norte, e índios amigáveis. Esse foi o tom, durante muito tempo, do que se escrevia para exaltar o espaço tropical recentemente anexado. Em meio a toda essa louvação um tanto formular e empertigada soaram, contudo, algumas vozes de fortes acentos, que dariam uma fisionomia mais vivaz ao barroco do segundo século. Entretanto, é só no final do terceiro século que aparece o primeiro movimento literário propriamente dito, quando um grupo de poetas de Minas Gerais, em consonância com o cânone estético europeu de sua época - o arcadismo -, trata de adaptá-lo à sensibilidade local. Também eram partidários de um rompimento com a metrópole e passaram à história por sua participação na Inconfidência Mineira, em 1789. A essa altura, as reivindicações de autoctonia e autonomia dos intelectuais tornavam-se abertamente nativistas, numa fase ainda anterior à consciência de pertencer a uma nação. Eles passam a dar voz ao sentimento de serem filhos de outra terra que não a Europa, mesmo se sua expressão se veicula numa língua européia. O romantismo vai atingir o ponto mais alto da realização e da teorização de uma literatura agora em secessão com sua matriz portuguesa, e não é coincidência que tal tendência se acentue na esteira da independência política efetivada em 1822. Os escritores românticos já estimam que é sua missão histórica construir uma literatura que seja nacional. E cogitam que vincar sua diferença dando vazão ao pitoresco pode implicar uma falácia, a de atender às exigências da alteridade européia. O indianismo, a mais saliente criação nativista, confrontou-se com esse risco. Esse é o debate que ocupa a maior parte do século XIX, quando, após o grito do Ipiranga, torna-se cadente a questão de definir os parâmetros de uma literatura que fosse esteticamente autônoma, a exemplo do País, que agora o era politicamente. A questão em pauta não era das mais simples. Por um lado, havia o argumento de que os autóctones deveriam praticar uma arte que se concentrasse em assuntos locais, na natureza luxuriante dos trópicos e em personagens típicos que não existiam na metrópole, como bandeirantes, gaúchos, sertanejos, escravos negros, índios. É verdade que isso precisava ser feito, e o foi. Por outro lado, insinuava-se a dúvida de que, ao agir assim, os escritores estariam produzindo exotismo para consumo externo. A via que evitasse esses dois escolhos, ou seja, não seguir os padrões alienígenas nem se restringir à cor local, revelava-se extremamente complexa e iria depender de uma construção gradativa, que congregaria os esforços de mais de uma geração de homens de letras. É com a prosa realista que finalmente se atinge a maturidade de uma visão crítica interna, feita de dentro e dirigida àquilo que conferia à nação seu perfil peculiar, após três séculos de desvio do ponto de partida em outro continente. Um tal perfil era a resultante específica de fatores heteróclitos, conflituosamente interagindo numa sociedade colonial nos trópicos, agrícola, patriarcal, escravocrata e mestiça. A superação do realismo é levada a termo pelo modernismo, no século XX. Exorcizados os fantasmas do século anterior através da aquisição daquela maturidade, os modernistas vão encarar de uma outra maneira as relações com a matriz. Ou seja, declaradamente afinando-se com a Europa e ao mesmo tempo em disjunção com ela. Assim, pregaram e praticaram uma arte que abalou iconoclasticamente as bases de um academismo que se institucionalizara nas letras pátrias, representado sobretudo pelos epígonos do naturalismo, do parnasianismo e do simbolismo. Puseram-se em dia com as vanguardas contemporâneas além-fronteiras. E lançaram uma plataforma inédita para lidar com o peculiar paradoxo que sempre inquietara os intelectuais nativos: como afirmar sua personalidade sem cair no pitoresco. A realização de tal projeto cabe a toda a obra, em prosa e verso, do conjunto dos modernistas. Mas encontrou sua particular explicitação no antropofagismo. Este propõe uma atitude não colonizada, onde a devoração sem culpa dos bens da civilização européia ande a par da rejeição de tudo aquilo que não atenda aos interesses do devorador ou que o ponha na posição subalterna do exibicionismo exótico. O percurso estava cumprido e a literatura brasileira pronta para enfrentar outras batalhas. Como aquelas, entabuladas mas ainda não resolvidas, decorrentes do advento da indústria cultural e do impacto da influência norte-americana. E isso, após ter passado tanto tempo a definir-se como específica enquanto floração do entrechoque de várias culturas.